O começo dessa história... provavelmente eu já os tinha visto nas reuniões do GAPN, mas me lembro da primeira vez em que os enxerguei de verdade. Meu marido me levou de moto para mais uma reunião, e quando desci da moto vi o casal super sorridente que estava ali na frente. Quando tirei o capacete o rapaz falou olhando prá mim: “ê moça, você tá famosa!” e ela riu.
No dia anterior tinha acontecido a audiência pública na câmera de vereadores de São Carlos, e o assunto era o descumprimento da lei federal que dá o direito a parturiente de escolher o acompanhante que estará com ela durante o parto, desde a internação até 24horas após o nascimento do bebê. Nós do GAPN comparecemos, e eu acabei falando bastante! Então... eles estavam rindo das coisas que eu falei demais, das coisas que falei de menos, de uma mulher que pediu a palavra e desceu o verbo no atendimento da Sta Casa, o que não tinha ligação direta com o tema em pauta... mas também foi interessante porque também ela tinha registrado uma queixa que desapareceu misteriosamente... então... eu fui lá e registrei minha indignação por alguns anestesistas se sentirem no direito de proibir a entrada do acompanhante, simplesmente porque não concordam com a lei! Como assim?! Então se eu não concordar com a cobrança de um imposto eu posso deixar de pagar? Bom... parece que os médicos, especialmente os anestesistas que trabalham em São Carlos só precisam cumprir as leis com as quais concordam!
Essa situação absurda mudou desde então, graças ao nosso trabalho e o acolhimento das denuncias por um vereador, que nos acompanhou em nossa batalha, chamou a audiência pública e depois apresentou um projeto de lei complementar à lei federal em questão. Vou falar mais sobre isso em outro post.
Continuando...
Eu fui proibida de entrar na maternidade no dia seguinte a audiência, e deu um baita trabalho até voltarem atrás. E eu estava exatamente neste clima de embate pelo bem, já que eu simplesmente não consigo aguardar que as coisas se resolvam por si só e boto a boca no trombone, quando o casal me contratou e comecei ir à casa deles. Tínhamos que tomar cuidado senão o assunto “militância pela humanização” predominava sobre todos os outros e os dois me escutavam tanto quanto eu a eles. E foi assim, nesta atmosfera de luta pelos direitos, que fomos nos aproximando do dia P.
Ah, nós tínhamos também uma afinidade religiosa, e às vezes a reunião de preparação acabava e continuávamos a falar sobre música, atitudes frente à vida, compreensão da influência dos fluxos de energia nos acontecimentos aparentemente desordenados, etc...
Eu tinha doulado a Mônica na noite anterior, mas tinha sido um parto bem rápido, de modo que eu não estava cansada. Mesmo assim dormi cedo naquele dia, e acordei às 3 da manhã, assim, do nada... Perdi completamente o sono, mas fiquei quieta na cama para não atrapalhar o sono do meu marido e meu filho. O celular tocou às 5 e era o rapaz, dizendo que a moça bonita estava em trabalho de parto, já com as contrações se aproximando, e ela já estava pedindo que eu fosse para lá. Quando cheguei, ele me contou que acordou às 3 da manhã e ela não estava no quarto. Foi procurá-la e a encontrou na sala, tendo uma contração. Começaram a monitorar os intervalos e a duração das contrações, fizeram um chá, ela tomou um banho... e então, às cinco decidiram me chamar. Estavam super tranquilos, encontrei-a na sala, sorridente, estava tudo indo muito bem. Esquentei água para a bolsa de água quente, fiz massagens... lembro-me que ele observou que eu alinhava meu corpo com o dela quando vinham as contrações. Nunca reparei nisso, nunca fiz de forma consciente, mas acredito que sendo a minha intenção me aproximar e ajudar, o alinhamento energético acontece naturalmente.
O dia logo amanheceu, ela estava cansada, tentou deitar-se um pouco e quando vinham as contrações se levantava. Apaguei as luzes do quarto e esse esquema deu certo durante algum tempo. Depois ela quis ir para o chuveiro de novo, tomou um banho longo, e começou manifestar vontade de ir para a maternidade.
Falei que achava que era um pouco cedo. Fui fazer mais um chá, esquentei água de novo para a bolsa de água quente, e mandei uma mensagem para a Dra Carla avisando que eu estava na casa da moça bonita e ela já estava querendo ir para a maternidade. Tudo bem, ficamos tranquilos. Dra Carla nessa época ficava na maternidade durante algumas manhãs, com os alunos do curso de medicina da UFSCAR, e nesta manhã ela estava lá.
Perto das oito e meia da manhã a moça quis mesmo ir para a maternidade. Estava muito preocupada com o aumento do tráfego na área onde mora, com a aproximação do horário de abertura do comércio, às 9h00, e então colocamos as coisas no carro, que já estava na rua, e fomos, com muita calma.
A chegada foi tranquila, ela foi levada para o quarto que já estava montado, e o exame de toque foi feito com ela sentada na banqueta de parto. Para minha completa surpresa a enfermeira informou que a dilatação estava completa e agora só faltava o bebê encaixar e descer. Então tínhamos tempo para encher a banheira e utilizá-la como fonte de alívio para o desconforto dessa fase final. Fui até o carro buscar a minha banheira, menor do que disponível na maternidade, recém-adquirida especialmente para os dias mais frios, pois assim seria mais rápido enchê-la e mais fácil manter a temperatura adequada para o nascimento na água, se esse fosse o desejo da parturiente. Quando estava voltando para dentro da maternidade encontrei o Fábio, da doulagem do dia anterior, entrando com um balde onde dariam o primeiro banho no bebê deles. Entrei com aquela expressão de felicidade de quando vemos mudanças que foram tão esperadas acontecendo! Os dois pais se cumprimentaram, e lá fui eu correndo inflar e encher a banheira para a moça bonita. Encontrei Dra Carla no corredor, e ela disse algo como: “não teve jeito de ficar mais um pouco em casa?” e eu respondi: “Carla, eu errei, a dilatação já está completa! Eu nunca poderia imaginar, ela deve ser muito forte para dor!”
Carla então ficou super feliz e foi lá no quarto dar um oi para a moça, disse que estava por perto, e saiu para continuar atendendo seus alunos, a enfermeira plantonista viria a cada quinze minutos verificar o bem estar fetal, e aguardaríamos a descida da bebê.
Enquanto eu estava arrumando isso o casal estava no quarto, o clima era de confiança e felicidade. Quando a banheira ficou pronta, forrada com o plástico descartável, e cheia de água quentinha, a moça entrou, apagamos as luzes, lamentamos a falta de um meio de escurecer o quarto numa manhã tão ensolarada... mas ela conseguiu relaxar e ficou ali durante um tempo. Depois saiu, andou um pouco, ficou de cócoras durante as contrações, sentou-se um pouco na banqueta, andou de novo, voltou para a banheira, saiu da banheira... e a bebê continuava sem completar o giro. Não estava voltada nem para a frente nem para trás, e sim, olhando para o lado, única posição impossível de nascer. E já tinham se passado três horas. Os ânimos começavam a desanimar... sugeri ao moço que fizesse suas orações, e ele prontamente sacou duas velas, foi para o banheiro, acendeu e começou a rezar. Depois de algum tempo ele me chamou “para ver uma coisa”. As duas velas eram iguais. Colocando a mão acima delas, uma irradiava muito calor e a outra quase nada. Enquanto uma mão ficava a uns 10cm da chama da vela, a outra a mão eu quase encostava na chama e não queimava! Eu olhei pra ele absolutamente espantada, ele ficou sério, continuou rezando, e alguns minutos depois a Dra Carla disse: “eu não sei o que vocês fizeram, mas a bebê completou o giro e se posicionou corretamente. Agora é só esperar mais um pouco”.
Então esperamos, novamente confiantes.
Mas as coisas continuaram não evoluindo... e algum tempo depois a moça e Dra Carla concordaram em romper a bolsa artificialmente para ver se alguma coisa mudava. O líquido saiu com um pouquinho de mecônio, mas beeeeem pouquinho, e bem diluído. Lembro que a moça olhou, olhou para a Dra Carla, e no olhar de ambas estava a tranquilidade. Ela se levantou e andava pelo quarto, ficava de cócoras durante as contrações, segurando na cama.
Nada...
Sugeri que fizéssemos a pressão nos dois lados do quadril para tentar ajudar. Eu empurrava de um lado e o marido do outro, e ela forte, valente, aguentando e fazendo o que podia para ajudar sua bebê a descer.
E nada...
Então, perto das duas da tarde veio a decisão pela cesárea. Decisão que foi aceita pela moça, mas não compreendida, não desejada, simplesmente aceita. Enquanto ela foi preparada e levada para o centro obstétrico eu fui com o marido até a recepção pagar a taxinha de paramentação, e deram um recibo. Achei tão incrível darem um comprovante de uma cobrança ilegal que fotografei o recibo. Depois o casal contou que deram muita risada quando estavam vendo as fotos... “isso só pode ser coisa da Vânia”. Pois é, militante em ação... mas nunca fiz nada com a foto, já não sou a mesma! Acho que resolvi tentar aprender a comer pelas beiradas...
Continuando: na hora de acompanhar a cesárea o moço resolveu não ir. Achou que poderia ficar nervoso e falar demais, sei lá... preferiu aguardar no lado de fora. Então peguei a câmera fotográfica e fui ficar com ela. Coloquei o terninho verde e fiquei aguardando autorização para entrar na sala onde ela estava. Entrei, expliquei a ela que ele tinha preferido ficar lá fora, ela já estava chorando antes disso... Logo Dra. Carla mostrou a ela a sua garotinha, e depois do nascimento a moça deixou suas lágrimas correrem. Melhor assim sabe? Melhor deixar a dor sair, não adianta fingir que não é nada e que o importante é que ambas estão bem. Claro que isso também é importante, mas se está triste e tem vontade de chorar, ninguém deveria dizer “não chora não, está tudo bem!”. Não está tudo bem!
Mas vai ficar. É preciso dar tempo ao tempo, digerir o acidente, limpar as feridas... e um dia a cicatrização se completa.
Fiquei com a moça até ela ser levada para o quarto e estar recebendo as visitas dos familiares. E fui à casa deles alguns dias depois, me lembro que nos sentamos à mesa e tomamos um café da tarde enquanto conversamos sobre o parto. Fiquei bastante.
Uma vez contei de uma doulagem onde eu rezei muito pela moça antes do parto. Por essa moça que doulei neste dia eu rezei muito depois do parto. O processo de cicatrização emocional da cesárea foi relativamente longo. Mas aqui acho pertinente fazer uma observação: a depressão pós-cesárea foi muito sofrida de curar porque ela foi o canal de cura para outros problemas anteriores, e o sentimento de estar morando longe de mãe/pai e irmãos e não poder contar com a ajuda direta deles durante muito tempo sem lhes atrapalhar a vida, etc... tudo isso teve que ser trabalhado durante a cura da depressão pós-cesárea. E lá no final deste processo a moça bonita saiu mais forte e muito mais dona de si e da sua vida.
Quando vier um outro bebê, outra gestação, outro parto, ela provavelmente estará menos gatinha e mais onça. Porque felizmente não há sofrimento que não nos ensine lições preciosas, e essa moça com certeza as compreendeu.
Encontrei o casal em dezembro, ela já tinha voltado a trabalhar, a rotina deles bem estabelecida, a amamentação mantida, tudo perfeitamente saudável, e o mais importante: ambos muito felizes e com um bebê sorridente no colo.
Eu, como sempre, sinto-me muito honrada por ter sido convidada a frequentar a casa deste casal e fazer parte desta história, de dor e superação, exatamente como em qualquer parto/nascimento. E continuarei sempre à disposição, ainda que a distância!
Um graaaande beijo,
Vânia Doula.
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