Conheci este casal nos encontros do Grupo de Apoio ao Parto Natural. Sempre sorridentes e participativos, absorviam as informações, cada vez mais encantados com a possibilidade de trazer a filha para o lado de cá da barriga sem ter que recorrer a técnicas invasivas.
Participaram de uma oficina de parto, e como sempre, toquei aquela música que tem uma mudança de ritmo muito forte e depois recupera a cadência mais tranquila. É uma música de quase dez minutos.
Mariana não aguentou e perguntou:
- “Mas essa música tem fim?!”
Respondi:
- Não parece mesmo que nunca mais vai acabar?! Mas acaba... uma hora ela acaba. Igualzinho a gestação que às vezes temos a impressão que nunca mais vai acabar... e igualzinho o TP... mas uma hora nasce. É preciso ter paciência e confiança infinitas. Um dia você entra mesmo em TP, e chega a hora em que o bebê estará nos seus braços.
Fui à casa deles algumas vezes, nas reuniões de preparação para o parto. Eles tinham frequentado as reuniões do GAPN e não tinham muitas dúvidas. Lembro bem do Rodrigo pedindo a palavra quando foram a uma reunião do GAPN, Mariana já com mais de 40 semanas. Ele falou sobre a oficina de parto, recomendando que todos que pudessem não perdessem essa oportunidade de fazer uma revisão de todo o processo do parto porque são muitos detalhes que podem fazer uma grande diferença.
Estando com mais de 40 semanas a família da Mariana começou a ficar muito preocupada. Seu pai é médico, e mais alguns membros da família também são. Em uma tentativa de acalmar aqueles que estavam perdendo o sono de tanta preocupação, Mariana e Rodrigo aceitaram submeter-se a exames sem indicação real, o que significa dizer: está tudo bem, não temos nenhum sinal de problemas, mas vamos fazer uns exames só para comprovar que está tudo bem mesmo. Acontece que só o fato de sair de casa, entrar em uma clinica ou em um hospital, ficar esperando, escutar histórias enquanto esperam, responder perguntas inadequadas, ter a expectativa de receber o resultado... isso tudo já começa a minar a confiança de qualquer cristão!
Exames demais para comprovar o bem estar fetal, que a rigor poderia ser observado pela motilidade fetal. (Se o bebê continua se mexendo bastante então está tudo bem). Talvez um exame para dar uma olhada na placenta e no líquido, se passar de 41 semanas, dependendo do médico... mas uma recomendação que sempre poderia ser feita é: NÃO estimar o peso do feto. Precisamos saber SÓ sobre a saúde da placenta, do líquido e do feto. Se ele está com 3 ou com 4 kilos não é uma informação importante. Bebês de 4 kilos nascem com mais facilidade quando a mãe(e o médico) não sabem... heheheh.
A mãe de Mariana chegou para aguardar o nascimento da neta. Instalou-se na casa deles. Para qualquer pessoa a chegada de uma mãe amorosa e querida é uma alegria. O casal me disse mais de uma vez que ela era muito tranquila, sua presença durante o TP não seria problema, e se chegassem ao ponto de precisar pedir licença acreditavam que ela não se ofenderia. Completavam a descrição dela com a observação de que como eu, ela também é psicóloga.
Um dia Dra Carla me ligou e perguntou se eu não estava sentindo a Mariana muito ansiosa. Talvez fosse bom conversar com o casal, ver como estavam encarando a espera além das 40 semanas. Eu sempre reluto em ligar para saber se está tudo bem. O contrato já foi feito, eu já fui à casa deles várias vezes, pedi que me ligassem sempre que sentissem necessidade, nem que fosse para tirar uma dúvida às 2 da madrugada... se começo a ligar para saber se está tudo bem quem está ansiosa sou eu! Fico me sentindo mais uma entre todas as pessoas que ligam para perguntar se esse nenê nasce ou não nasce! Mas, tendo uma indicação da médica de que havia certa tensão no ar... eu liguei. Conversamos duas vezes ao telefone, e fui até a casa deles numa passadinha bem rápida, achei que estavam tranquilos. No entanto, eles contaram que os últimos dias tinham sido mesmo muito tensos, com a família de cabelos em pé, muitos exames desnecessários, terminando com uma grande crise de choro... e depois disso parecia que os ânimos finalmente tinham se acalmado. Alguém percebeu que ao invés de ajudar estava atrapalhando. Mariana teve uma conversa com a mãe dela e esclareceu as coisas: você veio para me ajudar e não para me vigiar nem para ficar passando resultados de exames para a junta médica familiar dar o seu parecer... então, com os pingos bem colocados nos seus devidos is, Mariana relaxou, e entrou em TP na mesma noite.
Rodrigo ligou perto das 4 da manhã dizendo que ela tinha passado a madrugada com contrações e agora estavam ficando mais próximas e mais fortes. Cheguei muito rápido porque tanto eu quanto eles moramos perto de uma avenida marginal. O casal estava na suíte, a mãe dela dormindo em outro quarto, fizemos o possível para não acordá-la. Mariana estava bem ajeitada, de joelhos e debruçada sobre a bola suíça, descansando e movendo os quadris para relaxar. Pelo quarto eu vi caixinhas de suco e potinhos com castanhas, xícaras de chá... a madrugada tinha sido agitada.
Providenciei a bolsa de água de quente e enquanto estava na cozinha a mãe dela apareceu. Fiz o possível para estabelecer um clima de festa! (Hoje é dia de bebezinho novo na família, que dia feliz!). Mas minhas tentativas não foram correspondidas e logo a conversa girava em torno dos exames serem necessários, confiáveis, etc... Uma mesa de café da manhã foi colocada, fomos chamados para o desjejum. Mariana disse que não estava com fome e queria tomar um banho. As contrações ainda não estavam muito próximas, o nascimento não era eminente, não vi problemas em deixá-la banhar-se sem platéia. Errei feio.
Enquanto estávamos à mesa, ela no banho, eu a vi abrindo a janela do banheiro... mas estava envolvida em uma conversa sobre a falta de confiança que os médicos em geral sentem na capacidade da mulher em parir... Rodrigo levantou-se da mesa e foi dar uma olhada na Mariana. Ela estava quase desmaiando. Dia quente, chuveiro quente, contração forte, medo... a pressão caiu. Daí pra frente não arredei o pé de perto dela.
Logo ela começou a sentir o cansaço da noite mal dormida, falava da tensão dos últimos dias, e o casal falou também da tensão que sentiram na equipe: eu e Dra Carla. Era como se estivessem em um beco sem saída, pois se aceitassem a pressão da família e pedissem a cesárea, sentiam que a solicitação não seria bem recebida por nós duas, no que estavam cobertos de razão. Nós sempre vamos conversar e tentar ajudar a superar a tensão da reta final. Não me imagino nem em um milhão de anos aceitando um pedido de cesárea assim, simplesmente, e de consciência tranquila. O casal cogitou ligar direto para outro médico e solicitar a cesárea, mas também sabiam que não seria tranquilo. Nesse meio tempo Mariana teve aquela crise de choro, a família recuou um pouco, alguém ligou e disse que a rigor não havia problema em esperar mais um pouco já que os exames estavam todos com resultados normais...
Aí as contrações começaram, eles tiveram fé de que nasceria logo.
Mas o dia estava amanhecendo, Mariana quase desmaiou no chuveiro e daí pra frente ela mal conseguiu recuperar a calma. As lágrimas começaram a escorrer e a frase veio:
- “Eu não aguento mais”.
Após conversar um pouco e me certificar de que ela tinha atingido uma situação limite, liguei para a Dra Carla e disse que Mariana havia passado a noite com contrações, que estavam agora com intervalo de 3 a 4 minutos, mas ela agora estava solicitando a cesárea. Realizar a cirurgia em uma mulher que está em TP é bem diferente de tirar um bebê que não sentiu nenhuma contração sobre seu corpinho: o risco de prematuridade iatrogênica (provocada pelo médico) diminui drasticamente. Diante disto e também do histórico de ansiedade na última semana a solicitação do casal foi aceita e então fomos para a maternidade.
Chegando lá, eu e Mariana entramos e ficamos aguardando a enfermeira, o Rodrigo ficou fazendo a internação. O movimento no corredor estava bem baixo, ficamos quase sozinhas. As lágrimas começaram novamente a correr, Mariana me abraçou e disse:
- “Vânia, da próxima vez eu vou fazer tudo diferente, mas agora eu não aguento mais, você não faz idéia do inferno que foram os últimos dias...”.
Quase chorei junto. Eu sabia o quanto ela havia se preparado e o nível de pressão que sofreram para ela chegar a este ponto de exaustão. E o pensamento inevitável que começa a rondar os casais que sofrem esse tipo de estresse: “e se acontecer alguma coisa e nós tivermos que escutar o resto da vida que nós fomos avisados”?
Tenho um livro maravilhoso que me foi dado de presente pela Dra Carla: Birthing from within. Há um capítulo que fala sobre o medo, e a autora diz que até um quadro com a figura de um tigre em posição de ataque é capaz de provocar uma certa descarga de adrenalina. E esse assunto sempre volta à pauta das reuniões do grupo de apoio ao parto: o medo contamina com muito mais facilidade do que a coragem. É essencial que as pessoas presentes no parto sejam confiantes. Se tiver uma com medo ela pode contaminar o grupo todo. E a confiança que Mariana e Rodrigo sentiam finalmente tinha sido vencida.
Enquanto ficamos no quarto aguardando que viessem prepará-la para a cesárea ela começou a sentir muito calor, e a pressão foi até aferida algumas vezes seguidas porque de repente ela ficava até vermelha e pedia socorro com o olhar. Eu pegava o que estivesse por perto para abaná-la e teve uma hora que pedi até a prancheta da enfermeira! Com as contrações um pouco mais próximas, Mariana aceitou ir caminhando ao lado da maca até o centro cirúrgico porque deitada a sensação dolorosa seria maior. Quando saímos do quarto ela teve uma contração muito forte bem na frente de uma pequena plateia que aguardava o inicio do atendimento do ambulatório de alto risco. Enquanto eu fazia massagem nela observava as expressões de espanto... a dor do parto quase sempre é vista como se fosse um grande sofrimento e totalmente desnecessário. Fiquei pensando que um grande cartaz com a lista de todos os riscos de fazer uma cesárea fora de trabalho de parto deveria ser afixada nos corredores das maternidades e dos ambulatórios de pré-natal nos postos de saúde. Que tal avisar que não há um exame capaz de detectar maturidade neuronal e que fazer uma cesárea só porque um exame disse que os pulmões já estão maduros aumenta a probabilidade de ter um filho com problemas para mamar, e com hiperatividade e déficit de atenção? Não seria bom que as futuras mamães soubessem disso?
Ainda acompanhei o Rodrigo até o balcão da maternidade para pegar a ficha de autorização para acompanhar a cesárea. Fiquei na maternidade até que ela viesse para o quarto e tendo me certificado que estava tudo dentro do esperado fui embora de consciência tranquila. O casal sentiu-se bem atendido afinal.
Voltando: a próxima lembrança vívida que tenho é da Mariana voltando ao GAPN, meses depois, com sua pequena Manuela nos braços, e começou seu depoimento dizendo algo assim:
- “Eu sou professora e sempre incentivo meus alunos a terem uma visão crítica sobre os assuntos desenvolvidos... hoje eu vim contar o que eu aprendi durante a minha gestação e parto que virou cesárea. Espero que a minha experiência possa servir de exemplo para que vocês tenham a chance de repensar estratégias antes que seja tarde... eu nunca quis cesárea...”.
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Oi Vânia,
Que bom que está gostando da nova vida. Ficamos felizes por você.
Por aqui está tudo bem, a Manuela é uma graça ! Eu e o Rodrigo estamos encantados e muito felizes. Ela está andando por tudo, não para um minuto.
Fique à vontade para publicar o relato. Só peço a gentileza de não publicar foto.
um grande abraço
Mariana
01/11/2011
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